Foi no passado dia 7 de Agosto que nossa TITIA fez 85 anos. Valente!
Ficou assim chamada de Titia a partir das primeiras palavras ensaiadas pelo meu descendente mais novo e seu sobrinho neto, agora com 31 primaveras... Resumindo: Tia Feliciana foi rebaptizada à 29 anos aproximadamente e ficou curtamente e ternamente a nossaTitia... à séria!
Esta TITIA tem história que merece relevo, lá isso tem.
Titia é a mais nova de 3 irmãs e era solteira quando seu pai morreu. Por esse motivo ficou a residir num casarão da Av. 5 de Outº em Lisboa. Tirou um curso de auxiliar de enfermagem e trabalhou toda a sua vida na Sª Casa da Misericóridia embora grande parte em funções administrativas. Casou, teve um filho hoje arquitecto e seu marido resolveu descasar-se. Passou um mau bocado nesta fase. Não foi fácil até porque ela já não era nenhuma cachopa. Mas aguentou firme.
Quando se reformou tomou a decisão de escolher e inscrever-se num lar que lhe merecesse confiança. Visitou vários. Ponderou. Acima de tudo não queria ficar a tiracolo de seu filho entretanto casado e com dois rebentos.
Ela sempre foi lampeira no andar, curiosa, nada medricas e óptima dona de casa, como era apanágio da sua época. Sem ter que dar satisfações a ninguém passeou-se, viajou o que pôde e os parcos dinheiros lhe permitiram, dedicou-se à pintura, frequentou outras aulas, leu, foi ao cinema, conviveu com amigas e família, etc.
A vaga no lar ocorreu 10 anos depois da reforma. Ainda ela estava fresca e airosa. Mudou-se de arcas e bagagens, mantendo a sua casa, que diariamente visitava.
O casarão foi entretanto negociado com o senhorio e ela no lar continua.
Teve um grave achaque do coração e passou a ser mais receosa de cair. Mas continua com o espírito ágil de gazela já muito adulta e muito conhecedora da vida.
No dia dos seus 85 anos telefonei-lhe perto do meio dia porque sei que ela gosta de preparar a sua toilete matinal com toda a calma. Pensava desafiá-la para ir a uma matiné, ver A Proposta. Qual não fo o meu espanto quando ela me replica, um pouca sêcamente, que estava no centro comercial do Monumental, sentada num restaurante onde pretendia almoçar dali a pouco, sózinha. Havia tido vários convites mas recusou-os.
A minha mioleira trabalhou a correr: alguma coisa tinha desgostado a Titia neste seu dia. Mas o quê? Dei a volta à conversa para chegar a esse enigma. E cheguei. Não interessa para a história o que era.
Com riso e soltura lá lhe disse que iria ter com ela ao Résidence, onde daríamos umas boas gargalhadas ao assistirmos, em conjunto, ao filme das 16,30h. (eu havia consultado o site do cinema.sapo). Aceitou com alguma reserva...
Encontrámo-nos como o combinado. Lá estava Titia sentada no hall, com a Visão debaixo dos olhos... Deitei-lhe os foguetes que merecia uma aniversariante tão crescida... Ela descontraíu um pouco e como ainda era cedo, fomos ver umas montras e coscuvilhar a Musgo. Depois preparei-me para ir comprar os bilhetes. Levei-a a tiracolo e ao passarmos no recinto das comilices, apeteceu-lhe lanchar um crepe... Obrigou-me a comer outro igual. Deixei-a sentadinha e fui à bilheteira.
Espanto dos espantos: o filme tinha saído na véspera e o site não havia sido actualizado. Olhei o cartaz e pareceram-me as restantes películas piores que o susto, o que não seria aconselhável para o festejo do dia. Após conferência com a menina vendedora, ela sugeriu-me Duplo Amor. Deu-me a sinopse do filme: do mal o menos..., apesar de só começar às 17,30h.
Voltei ao crepe e à Titia. Comuniquei-lhe a mudança de planos. Mostrou receio pela hora tardia a que acabaria a fita... Mas aceitou e nesse momento já se encontrava bem disposta, a Titia de sempre. Arrancá-la da cadeira foi tarefa duradoura... Estava apreciando a água a cair e o ambiente fresco enquanto ainda mordiscava o crepe, sêco como palha (é verdade, não prestam para nada...).
Instalámo-nos no cinema, já com os documentários começados e depois de escolha prolongada dos assentos...
Dizia-me ela, alto e bom som: sabe, eu tenho dificuldades com a vista apesar dos óculos... Choro muito, estou sempre a lacrimejar...
Respondi-lhe: Titia, mais baixinho... As pessoas não gostam de ser perturbadas... Irritam-se sem necessidade...
Retorquiu: não, tenho que escolher bem as cadeiras... E ainda tenho que poisar a bengala...
Bom, acabámos por fim sentadas.
Começou o filme. Tratava do seguinte drama, com Isabella Rossellini e Gwyneth Paltrow;
" Leonard é um homem atraente mas perturbado que regressa à casa de infância após uma tentativa de suicídio. Enquanto recupera, sob o olhar atento dos seus pais, ele conhece, quase ao mesmo tempo, duas mulheres: Michelle, uma bela e misteriosa vizinha – exótica e por isso meio deslocada no bairro de Brighton Beach; Sandra, a encantadora e atenciosa filha do empresário suburbano que vai comprar o negócio da família de Leonard. Numa primeira fase, não resistindo à sensualidade de Sandra (e à pressão da família), Leonard descobre, gradualmente, uma oculta intensidade emocional nesta mulher. Quando Michellle parece estar condenada a apaixonar-se por Leonard e a família de Leonard o pressiona a comprometer-se com Sandra, ele vê-se forçado a tomar uma decisão impossível entre a impetuosidade do desejo, arriscando-se a cair na obscuridade que quase o matou, ou o conforto do amor. "
Quando o herói resolve pedir a Michelle que fujam juntos (levando escondido no bolso um anel) e ela lhe comunica que ficará com o seu anterior amor, ele vai até à beira da praia e lança a caixinha com o anel pelo areal.
Nessa altura Titia, que desde o começo tinha proferido em tom coloquial alguns àpartes sobre o enredo, sai-se com esta:
- Que peninha, bem podias dar-me o anel hoje, que faço anos...
Vejo cabeças (felizmente poucas...) rodarem nos assentos... Peço-lhe mais uma vez para reter os comentários e dúvidas pois logo a seguir ao filme os discutiriamos... Em vão... Estava feliz! Dava largas ao seu pensamento...
Ora bolas, se o objectivo era fazê-la feliz, que se lixasse o mexilhão... E parei de a atormentar.
Terminada a matiné, de que gostou, encaminhámo-nos para a esquina da rua onde seríamos repescadas por meu marido e seu sobrinho.
Após trocas de parabéns vamos parar ao Stop do Bairro, em Cº de Ourique. Pelo caminho Titia comenta que há muito tempo não lhe atravessava o estreito um belíssimo arroz de cabidela...
Respondi: tem piada, no Stop há um determinado dia da semana em que o fazem como prato do dia. Por sinal muito apetitoso...
Chegámos e como sempre estava superlotado. Quando nos sentámos perguntei pelo dia do dito arroz por descargo de consciência. E não é que havíamos acertado na mouche?
Então venha ele, para os três... Vinho tinto também... Delicioso queijinho de ovelha e bom pão... Azeitonas e afins...
Todos comemos e bebemos melhor ainda... No final uma torta de laranja para fazer as vezes de bolo de aniversário... Cantámos baixinho. Titia riu e acompanhou a músiquinha... Conversou. Mostrou a sua surpresa por ter passado um dia de anos de forma tão feliz e apetitosa... Não estava a contar com isso, disse entre dentes.
Veio à baila a história da sua família. Rapidamente escrevo na toalha da mesa alguns apontamentos de nomes e respectivos laços de parentesco que meu marido e filhos desconheciam. Há que guardar as recordações daquele lado, já que Titia é a última sobrevivente da sua geração.
A caminho do lar, passava da meia noite, Titia solta a sua verve:
- Agora é que estava na hora de irmos para a night. Estou mesmo bem disposta. Não me apetece nada a cama...
No carro, gargalhada geral. E continua:
- Então não é? Não concordam?
- Titia, amanhã é dia de trabalho. Seu sobrinho tem que se levantar cedo, não esqueça...
- Ah! É verdade. Têm razão. É melhor ficar no lar e deixar para outra altura...
Agora digam-me: a nossa Titia não é um personagem digno de nota?
Claro que é!